Compartilhamos aqui o artigo de Luis Corrêa Lima, sacerdote jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Trabalha com pesquisa sobre diversidade sexual e de gênero, e no acompanhamento espiritual de pessoas LGBT. Publicado originalmente no Dom Total.

 

Um fenômeno religioso e cultural dos tempos atuais é a disseminação e a persistência do fundamentalismo religioso. O termo “fundamentalista” remete a fins do século XIX e início do XX, em que grupos protestantes nos Estados Unidos reagiam contra os métodos científicos de interpretação da Bíblia. A Palavra de Deus, por Ele inspirada, supostamente estava isenta de erro e deveria ser interpretada literalmente em todos os seus detalhes. O mundo católico também compartilhava esta ideia. No pontificado de Pio X, ensinava-se oficialmente que os três primeiros capítulos do Livro do Gênesis eram verdade histórica; ou seja: o mundo foi feito em seis dias, o homem veio direto do pó da terra e a mulher veio da costela do homem. Por séculos, também se utilizou a Bíblia para se afirmar a imobilidade da terra, para se justificar a escravidão dos povos africanos e a submissão da mulher ao homem.

A população LGBT não escapou da dura condenação com base nos textos bíblicos. O texto mais utilizado foi a história de Sodoma e Gomorra, cujo pecado clamou aos céus e resultou no castigo divino destruidor (Gn 19). Este pecado foi recusar a hospitalidade aos que visitavam o patriarca Ló, a ponto de tentarem violentá-los sexualmente. Com frequência, a violência sexual era uma forma de humilhação imposta por exércitos vencedores aos vencidos. Inicialmente, o delito de Sodoma era visto como “orgulho, alimentação excessiva, tranquilidade ociosa e desamparo do pobre e do indigente”. Através do profeta, o Senhor diz: “Tornaram-se arrogantes e cometeram abominações em minha presença” (Ez 16,49-50). Vários séculos depois, tal pecado foi identificado com a homossexualidade, então chamada “sodomia”. Mas, na origem, nada tem a ver com o amor entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo com relações sexuais livremente consentidas entre pessoas adultas do mesmo sexo.

Há um relato semelhante ao pecado de Sodoma em outra parte da Bíblia (Jz 19 e 20). Um levita e sua concubina se hospedaram na cidade de Gabaá, da tribo de Benjamin. Os habitantes da cidade hostilizaram os visitantes e estupraram a concubina do levita até a morte. O Senhor suscitou os israelitas contra aquela cidade, que foi completamente destruída. A partir deste relato, não se deve condenar a heterossexualidade. O que se condena, tanto em Sodoma quanto em Gabaá, é a falta de hospitalidade, é a hostilidade violenta contra a pessoa que vem de fora; e não a homossexualidade ou a heterossexualidade.

No Novo Testamento, o apóstolo Paulo, que era um judeu convertido ao cristianismo, afirma que quem ama o próximo cumpriu a lei, pois os mandamentos se resumem em amar ao próximo como a si mesmo (Rm 13,8-10). Este é o espírito dos mandamentos e o critério de sua interpretação. Mas ao refutar o politeísmo, o apóstolo o associa à homossexualidade. Os pagãos são acusados de não adorar o Deus único, mas as criaturas, e de permitir essa prática sexual, então vista como abominação pelos judeus. Tal comportamento é considerado castigo divino por causa de uma prática religiosa errada: “Por tudo isso, Deus os entregou a paixões vergonhosas”. (Rm 1,18-32). Naquele contexto, este argumento era compreensível. Não havia o conceito de “orientação sexual”, algo profundamente enraizado na pessoa, com relativa estabilidade, levando-a à atração pelo sexo oposto ou pelo mesmo sexo. A orientação sexual nada tem a ver com a crença em um ou em vários deuses, ou com qualquer prática religiosa. Usar este argumento de Paulo hoje seria como dizer a uma pessoa heterossexual que, se ela aderir a uma religião pagã, vai se tornar homossexual. Isto não faz sentido. É uma superstição.

A evolução das ciências e da sociedade levou muitos cristãos a lerem de outro modo seus textos sagrados, libertando-se de falsos dilemas do tipo: “ou você crê, ou você pensa”. O Concílio Vaticano II (1962-1965) ensina que a Revelação divina testemunhada na Bíblia é expressa de diversos modos. O leitor deve buscar o sentido que os autores sagrados em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretenderam exprimir servindo-se dos modos ou gêneros literários então usados. Devem-se levar em conta as maneiras próprias de sentir, dizer ou narrar em uso no tempo deles, como também os modos que se empregavam nas relações entre os homens daquela época. (1)

Décadas depois, um documento romano sobre a interpretação da Bíblia na Igreja alertou para o risco do fundamentalismo, que encontra cada vez mais adeptos em segmentos religiosos e seitas, como também entre católicos. Por suporem que a Sagrada Escritura foi ditada por Deus, recusam abordá-la com qualquer questionamento ou pesquisa crítica. Isto coloca na vida destes adeptos uma falsa certeza, pois confunde as limitações humanas da mensagem bíblica com a substância divina dessa mensagem. O fundamentalismo convida tacitamente a uma forma de “suicídio do pensamento”. (2)

Libertar-se desta prisão mental e seus grilhões é fundamental para o progresso intelectual e moral da humanidade. É um avanço civilizatório que desfaz obscurantismos, preconceitos e opressões. Só assim, a face de Deus que é amor pode resplandecer com mais brilho.

1 – Dei verbum, n. 12. Disponível aqui.

2 – A interpretação da Bíblia na Igreja, 1993, parte I, ítem F. Disponível aqui.