Naquele tempo não havia o termo homossexualidade, mas pode-se falar de atração e relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Não se pode negligenciar o que a Bíblia diz sobre isto, nem os desdobramentos históricos que daí se seguiram. Mas é preciso se tratar deste assunto com a devida profundidade, indo além da leitura ao pé da letra. O livro sagrado dos cristãos não é manual de receita de cozinha ou manual de instrução de eletrodoméstico, com resposta categórica para todas as perguntas. Quem usá-la deste modo, próprio do fundamentalismo, não encontrará o Deus vivo, mas o ídolo da burrice.

A Revelação divina testemunhada na Bíblia é expressa de diversos modos. Segundo o Concílio Vaticano II, o leitor deve buscar o sentido que os autores sagrados em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretenderam exprimir servindo-se dos gêneros literários então usados. Devem-se levar em conta as maneiras próprias de sentir, dizer ou narrar em uso no tempo deles, como também os modos que se empregavam frequentemente nas relações entre os homens daquela época (Dei Verbum, n. 12).

No judaísmo antigo, acreditava-se que o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se unirem e procriarem. Supõe-se uma heterossexualidade universal, expressa no imperativo “crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,28). Isto foi escrito no tempo do exílio judaico na Babilônia. Para o povo expulso de sua terra e submetido a uma potência estrangeira, crescer era fundamental para a sobrevivência da nação e da religião. Não se nega o desígnio divino de que a humanidade se espalhe pela terra, mas a necessidade de sobrevivência do povo judeu naquele tempo era urgente.

O sêmen do homem supostamente continha o ser humano inteiro, e devia ser colocado no ventre da mulher assim como a semente é depositada na terra. Não se conhecia o óvulo. O próprio nome sêmen está ligado a semente. Ele jamais deveria ser desperdiçado, como mostra a história de Onã. Ele se casou com Tamar, viúva de seu irmão Her, que morreu sem ter descendente. Conforme a lei (Dt 25,5-10), Onã deveria suscitar uma posteridade a seu irmão, e o primeiro filho homem deveria ter o nome deste irmão falecido, Her. Mas Onã praticou coito interrompido, ejaculando fora da vagina de sua esposa e impedindo-a de conceber. Por isso, ele foi fulminado por Deus, como punição por esta transgressão (Gn 38,1-10).

É neste contexto que a relação sexual entre dois homens era inadmissível. Israel devia se distinguir das outras nações de várias maneiras, com o seu culto, sua lei e seus costumes, segundo o código de santidade do Livro do Levítico. Aí se inclui a proibição do homoerotismo, considerado abominação (Lev 18, 22). Proíbe-se também, e com rigor: trabalhar no sábado, comer carne de porco ou frutos do mar, aparar o cabelo e a barba, tocar em mulher menstruada durante sete dias, usar roupa tecida com duas espécies de fio, plantar espécies diferentes de semente em um mesmo campo e acasalar animais de espécies distintas. Quando o cristianismo, nascido em Israel, expandiu-se entre os povos não judeus, a santidade do Levítico não se tornou norma para estes povos, mas a proibição do homoerotismo sim, conforme se verá adiante.

A esta proibição somou-se a história de Sodoma e Gomorra, cujo pecado clamou aos céus e resultou no castigo divino destruidor (Gn 19). O pecado foi recusar a hospitalidade aos que visitavam o patriarca Ló, a ponto de tentarem violentar sexualmente estes visitantes. Com frequência, a violência sexual era uma forma de humilhação imposta por exércitos vencedores aos vencidos. Inicialmente, o delito de Sodoma era visto como “orgulho, alimentação excessiva, tranquilidade ociosa e desamparo do pobre e do indigente” (Ez 16, 49). Através do profeta, o Senhor diz: “Tornaram-se arrogantes e cometeram abominações em minha presença” (Ez 16, 50).

Há um relato semelhante ao pecado de Sodoma no livro dos Juízes (Jz 19 e 20). Um levita e sua concubina se hospedaram na cidade de Gabaá, da tribo de Benjamin. Os habitantes da cidade hostilizaram os visitantes e estupraram a concubina do levita até a morte. O Senhor suscitou os israelitas contra aquela cidade, e ela foi completamente destruída. A partir deste relato, não se deve condenar a heterossexualidade. O que se condena, tanto em Sodoma quanto em Gabaá, é a falta de hospitalidade e a hostilidade violenta com a pessoa que vem de fora. Vários séculos depois, o pecado de Sodoma foi identificado com o homoerotismo, mas na origem ele nada tem a ver com o amor entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo com relações sexuais livremente consentidas entre pessoas adultas do mesmo sexo.