Durante muitos anos fui um ferrenho católico. Para o bem e para o mal eu acreditava e seguia o que me era proposto, sem questionar muito. Se a religião prende, ela também dá uma segurança danada. E quando tudo o que você precisa é se sentir parte de alguma coisa organizada e forte, o apelo da religião é irresistível.

Depois de um longo, difícil e libertador processo, não me considero mais católico – pelo menos não de uma forma tradicional. Minha única ligação real com o catolicismo é por meio de um grupo de reflexão, suporte e partilha de gays católicos (o Diversidade Católica). Na verdade, sou um dos “fundadores” do grupo. Entendi que o meu processo de auto-aceitação poderia ajudar outros gays que estão na Igreja a vivenciar isto de forma menos dolorosa.

O tema religião – especialmente o catolicismo – e homossexualidade rende inúmeros e calorosos debates. Há pouco tempo no blog de um conhecido, André Fischer, diretor do Mix Brasil, eu e o restante do grupo fomos classificados de bem-intencionados, porém ingênuos. Para o referido autor a única solução para um / uma homossexual católico (a), diante das inúmeras besteiras que o magistério tem dito a respeito do tema, seria romper com a Igreja, sair do catolicismo.

A primeira tentação e o movimento mais espontâneo, sem dúvida alguma, seria este mesmo. Abandonar, deixar, partir de onde você não é aceito, do local onde a autoridade máxima diz que você não é bem-vindo a não ser que siga certas condições que, na verdade, tem como resultado deixar de viver a autenticidade daquilo que você é.

No entanto, esta postura é ingênua e infrutífera. Primeiro porque a pertença religiosa, assim como a orientação sexual, não é uma escolha. Nós temos hoje, sem dúvida, uma espiritualidade que eu chamaria de pós-identitária, que permite à pessoa escolher dentre os vários sistemas religiosos, não um deles e compreender-se a partir dele, assumindo uma identidade que tem como matriz a visão de mundo concorde com esta religião. Esta espiritualidade pós-identitária nos permite captar elementos diversos dos vários sistemas religiosos e organizá-los, de tal maneira, que o critério máximo de importância dada a cada elemento é a própria subjetividade. Não é do meu interesse fazer uma avaliação moral sobre este tipo de espiritualidade, apenas dizer que a pertença religiosa não se dá nestes moldes.

A religião é um sistema de coordenadas que nos ajuda a organizar a nossa compreensão a respeito do mundo e a nos situarmos em relação às questões e demandas da nossa vida, especialmente aquelas mais significativas que dizem respeito ao próprio sentido da existência e às experiências-limite desta: o amor, a morte, o sofrimento injustificável. Ela é estruturadora de vários aspectos da vida da pessoa – de tal forma, que não é uma opção fácil e nem indolor abandoná-la. Isto não pode se transformar num slogan, numa orientação básica a ser dada em casos de conflito. Porque implica um grande sofrimento por parte de quem, realmente, se experimenta religioso.

Outro aspecto importantíssimo da questão é que abandonar instituições e ambientes hostis à diversidade sexual é a maneira mais ingênua de reforçar o perfil homofóbico de tais instituições. Caso isto fosse possível, muitos setores da população concordariam, tenho certeza, num maravilhoso projeto de construção de um imenso gueto com trabalho, prédios residenciais, lojas, boates e saunas gays. Como muitas pessoas se sentiriam aliviadas com isso.

No entanto, para nós, gays, o que interessa realmente é valorizar estes espaços de liberdade sem abdicar de nos impor em outras esferas sociais. A cidadania, “o direito de ter direitos” segundo Hannah Arendt – civil, religiosa, etc. – é fruto de uma intrincada e complexa gama de reivindicações e negociações que começam pelo simples fato de não se conformar, de permanecer na tensão desconfortável, não se refugiando no bem-estar de uma situação, lugar, condição especialmente criada pelos detentores do poder hegemônico para abrigar os que questionam tal poder. Permanecer transgredindo, incomodando, questionando é a prerrogativa absoluta para qualquer transformação. No caso específico tratado aqui, abandonar a Igreja seria apenas dar mais autoridade para o discurso homofóbico de certas instâncias eclesiais. Permanecer de forma transgressora é a melhor solução.

– “O Inquieto”