Compartilhamos o texto de Cristiana Serra*, do Diversidade Católica, sobre o debate acerca da controvérsia em torno das tentativas de implementação das chamadas “terapias de reorientação sexual” no Brasil – especialmente no tocante à judicialização da disputa. Publicado originalmente aqui

No dia 31 de janeiro deste ano, o Ministério Público Federal em Goiás (MPF/GO) instaurou procedimento preparatório (PP) a fim de “apurar ações ou omissões ilícitas do Conselho Federal de Psicologia (CFP) relativas a eventual impedimento na atuação da atividade profissional dos psicólogos constante da resolução CFP n° 1, de 29 de janeiro de 2018”, conforme divulgado pelo próprio MPF. Foi uma reação rápida à publicação, apenas dois dias antes, por ocasião do Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais, da Resolução nº 001/18 do CFP, que “estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis”.

A Resolução nº 001/18
A recente decisão do CFP orienta os profissionais da Psicologia a atuar, no exercício da profissão, de modo a: (i) não considerar as travestilidades e transexualidades patologias; (ii) contribuir para a eliminação da transfobia; (iii) não favorecer qualquer ação de preconceito; nem (iv) omitir-se frente à discriminação de pessoas transexuais e travestis. Fontes do CFP explicaram que, na prática, a Resolução “impede o uso de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminação e veda a colaboração com eventos ou serviços que contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias”. Em cerimônia em que o CFP recebeu da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (RedTrans Brasil) o prêmio “Parceiros do combate à Transfobia em 2017″, o conselheiro Pedro Paulo Bicalho destacou:

Somos muito orgulhosos por termos, há 19 anos, uma resolução que afirma que a homossexualidade não é desvio, não é patologia, não é perversão. Mas essa resolução é relativa à orientação sexual e não à identidade de gênero. Neste dia 29, fizemos essa reparação, ao promulgarmos uma resolução que fala diretamente sobre as questões de identidade de gênero.

A Resolução 001/99
Bicalho referia-se à Resolução nº 001/99 do CFP, que, por sua vez, “estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual”. A resolução, partindo do princípio de que “a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade”, estabelece em seu Art. 3º que “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”. O Art. 2º estipula que “deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas”. Acesse a íntegra da Resolução 01/99 aqui.

A construção daquela Resolução foi deflagrada por uma demanda de “lideranças de grupos homossexuais” (como à época eram chamados). Na sua comunicação no XXIX Encontro Anual da ANPOCS, em 2005, o sociólogo Ricardo Mariano assinalava que “a Resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia nasceu como resposta à tentativa de psicólogos evangélicos de reverter a sexualidade de homossexuais.”

Mariano relata que “o estopim que detonou a redação da resolução foi o 3° Encontro Cristão sobre Homossexualidade, realizado pelo Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), na cidade mineira de Viçosa, em junho de 1998, propondo o auxílio a “pessoas em crise de identidade sexual”. Ao tomarem conhecimento sobre o evento, lideranças de grupos homossexuais denunciaram seus responsáveis ao Conselho Federal de Psicologia, que normatizou por meio da referida resolução a atuação de seus filiados, proibindo a cura e o tratamento da homossexualidade.”

Por ocasião do Dia do Orgulho LGBT (28 de junho) de 2017, o CFP lançou a campanha “A psicologia respeita a diversidade”, com o mote “Não há cura para quem não está doente”.

Tomada em conjunto com outros documentos emitidos por entidades integrantes do Sistema Conselhos de Psicologia, a campanha de 2017 vem inserir-se no contexto de controvérsias públicas engendradas em torno da Resolução nº 001/99, sobretudo a partir dos recorrentes projetos de lei, nas três esferas do Legislativo, que propõem diferentes versões para o “tratamento” ou “reversão” das orientações sexuais não heterossexuais.

No Judiciário
Entretanto, paralelamente à busca de viabilizar “terapias reparadoras” por meio de leis, observa-se uma estratégia de judicialização desta disputa, quer dizer, tentativas de autorizar essas “terapias” por meio de decisões do Judiciário. Nesse contexto parece vir se inserir a iniciativa do MPF/GO, em fevereiro deste ano, de investigar a eventual “ilicitude” da Resolução nº 001/18 do CFP.

Cerca de quatro meses antes, em 15 de setembro de 2017, o juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho havia deferido parcialmente uma liminar que visava à suspensão dos efeitos da Resolução nº 001/99. A decisão (veja aqui a íntegra) foi seguida de uma enorme controvérsia pública, que se estenderia por semanas e envolveria não só o Sistema Conselhos de Psicologia, mas organizações e atores do campo científico, do campo jurídico e dos movimentos pela diversidade sexual e de gênero. Foram numerosos os protestos e comentários nas redes sociais, e profusa a cobertura de imprensa. Carvalho foi acusado de haver “autorizado a ‘cura gay’”, de acordo com o caráter da ação promovida por Rozângela Justino.

A liminar em questão fora pedida no contexto de Ação Popular (AP) movida contra o CFP pelos psicólogos Rozangela Alves Justino, Rozângela Nascimento de Mendonça e Adriano José Lima e Silva.

Rozângela Justino
Em dissertação de 2017 sobre a “psicologia evangélica” no Brasil, Cleber Macedo lembra que Justino, principal autora da ação, fora, em 2009, a primeira psicóloga punida com uma “censura pública” pelo CFP por descumprimento da Resolução nº 01/99, após uma série de denúncias por parte de ativistas ligados ao movimento LGBT, por defender abertamente as “terapias de reversão” da orientação sexual e afirmar ser possível “deixar a homossexualidade”, segundo os termos utilizados pela própria Justino na sua fala em seminário organizado pelo CLAM em 2003.

À época de sua punição pelo CFP, Justino declarou, em “carta aberta à sociedade brasileira” publicada em seu blog, também citada por Macedo, que deixaria de atender as pessoas que “voluntariamente desejam deixar a homossexualidade”. Desde então, acusa o Sistema Conselhos de promover sua “perseguição” e “censura”, denunciando o caráter “nazista” da resolução.

Além se apresentar como “psicóloga cristã”, tendo sido coordenadora do CPPC, como lembra a antropóloga Jane Russo, Justino foi uma das fundadoras da filial brasileira da Exodus, grupo de militância cristã que advogava a “libertação da homossexualidade” por meio do “arrependimento e da fé em Jesus Cristo como Salvador e Senhor”.

Atualmente, Justino encontra-se lotada como assessora no gabinete do Deputado Federal Sóstenes Cavalcanti, integrante da “bancada evangélica” e afilhado político de Silas Malafaia. Em seu blog, onde se identifica como “missionária”, Justino cita seu vínculo com uma certa Associação Brasileira de Psicólogos em Ação (ABRAPSIA) – em cujo registro junto ao CADE ela consta como presidente e única sócia. Em 2016, um grupo que incluía colaboradores próximos seus – como Adriano José Lima e Silva, coautor da referida AP – havia composto uma chapa intitulada “Psicólogos em Ação” para disputar as eleições daquele ano para os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs), nas quais foram derrotados.

A trajetória de Justino parece ilustrativa de uma estratégia de disputa de espaços por meio da interpenetração – em vez de mera contraposição – das linguagens entendidas como “científica” e “religiosa”.

Respaldo às resoluções do CFP
No âmbito legislativo, as diversas propostas parlamentares contrárias à Resolução nº 001/99 vêm sofrendo arquivamento ou retirada de tramitação, em parte, em decorrência da pressão exercida pelo CFP e setores da sociedade civil organizada junto aos parlamentares.

Para tanto, têm sido decisivas as estratégias de legitimação tanto da resolução em si quanto do próprio Sistema Conselhos de Psicologia, entre as quais se destacam o recurso ao “consenso científico” e os argumentos da competência técnica; da representatividade do conselho profissional junto à categoria, assegurada por processos decisórios democráticos; e da delegação de autoridade à autarquia prevista na legislação.

Têm se mostrado igualmente cruciais os mecanismos de legitimação mútua entre atores, grupos e setores de diferentes campos – tais como a saúde mental e as ciências da saúde em geral, o direito e os movimentos sociais pela diversidade sexual e de gênero, feministas e defensores da laicidade do Estado – que tendem a convergir em torno de uma perspectiva de garantia e expansão de direitos. Aponta no mesmo sentido outro argumento recorrente do Sistema Conselhos de Psicologia em defesa da Resolução nº 001/99: a própria constituição desta em “referência dos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, sendo citada como dispositivo orientador exemplar de garantia de direitos”.

Simultaneamente, a mesma “derrubada” das propostas parlamentares contrárias à Resolução nº 001/99 serve como mais uma evidência da validação desta na esfera legislativa. Uso instrumental análogo é feito das diferentes decisões judiciais proferidas em favor da resolução, tratadas como reiteradas corroborações de sua legalidade por parte do Judiciário (veja aqui nota nesse sentido).

A luta pelo monopólio argumentativo
Contrária a essa tendência, a decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho em 2017 pode ter aberto um precedente capaz de romper com essa estratégia de justificação relativamente circular. Outras rupturas similares com certa estratégia de autorreferendamento já se encontram em andamento.

O Sistema Conselhos de Psicologia e aliados, em sua defesa da Resolução nº 001/99, tomam os discursos científico e acadêmico como válidos por si mesmos e os tratam como homogêneos e isentos de paradoxos e conflitos. A essa reificação contrapõem-se estratégias de apropriação de atores contrários à Resolução. Entre elas figuram tanto o acionamento de linguagens especializadas para fins de legitimação “técnica” de argumentos – mesmo aqueles expressos em linguagem “religiosa” – quanto a disputa por espaço dentro dos próprios campos científico e acadêmico, por meio de atores, grupos e organizações como o CPPC e outras de médicos e juristas que se apresentam como “cristãos”.

De maneira similar, o recurso ao ideário dos direitos humanos merece ressalvas; entre elas, conforme adverte o antropólogo Sérgio Carrara em artigo de 2010, a de que a delimitação do que sejam “direitos humanos” depende de negociações e articulações de forças em um plano extrajurídico, ou seja, essencialmente político.

Assim, os agentes identificados como “religiosos” vêm se valendo das garantias de proteção à vida ou à família, bem como às próprias liberdades de crença religiosa e de expressão. Apelam também ao princípio da laicidade do Estado, que assegura o direito à liberdade religiosa, ou ainda à defesa da liberdade de expressão, para bloquear demandas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos em geral (conforme relatamos em dissertação de 2017), e investir contra a Resolução nº 001/99 do CFP em particular.

A associação entre as linguagens científica, acadêmica, do ativismo, dos direitos e religiosa vem se mostrando instrumental nas disputas em torno da Resolução nº 001/99 e das tentativas de liberação de “terapias de reorientação” ou “reversão sexual”. Nesse contexto, o discurso religioso vem ensejando o reforço de valores e o fortalecimento de atores e seus posicionamentos mediante sua sacralização, tal como na caracterização da “perseguição religiosa” alegadamente sofrida por figuras como Rozângela Justino, (como relata Macedo, já citado), que evocaria episódios de martirização, figura tão cara ao imaginário cristão.

Por outro lado, o discurso religioso, especialmente no campo cristão, tampouco é homogêneo. Tratá-lo como tal e ignorar sua pluralidade e suas contradições cria uma impressão de unidade e uniformidade de forte impacto político, na medida em que reveste de poder não só “os cristãos”, “os evangélicos”, “a igreja” – entidades coletivas tanto mais poderosas quanto mais monolíticas – como também aqueles que se arvoram em seus representantes e líderes e pretendem falar em nome justamente “dos cristãos”, “dos evangélicos”, “da igreja”.

Tratar o campo religioso como isolado e estanque obscurece sua porosidade e permeabilidade em relação a outros campos. Se, como adverte o sociólogo argentino Juan Marco Vaggione, a complexidade do “religioso” tende a ser essencializada e, de certo modo, distorcida pelo ideário da modernidade, é de urgente e vital importância estratégica reconhecer o caráter plural e polifônico desse campo e evitar sua redução e equiparação ao “conservador”, a fim de promover uma reapropriação da linguagem religiosa “em termos favoráveis à liberdade e à diversidade sexual”.

Chamado ao debate
Contemplando as perspectivas citadas, o CLAM realizará em junho, mês em que se celebra o Dia do Orgulho LGBT, um evento para refletir sobre as disputas em torno das chamadas “terapias de reorientação sexual” e as estratégias de legitimação e deslegitimação aí empregadas, tomando como ponto de partida as controvérsias que vêm cercando as Resoluções nº 001/99 e 001/18 do CFP.

Nesse cenário, pretendemos que seja uma oportunidade para dialogar sobre as negociações e tensionamentos em que se veem envolvidos acadêmicos, cientistas, gestores, militantes e membros de comunidades de fé. Entendemos que essas categorias não são estanques e se interpenetram nas experiências concretas de atores e grupos. Pretendemos discutir também possibilidades e estratégias de ação, visando ao asseguramento e expansão de direitos em prol da diversidade sexual e de gênero.

*Mestre e doutoranda em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), pesquisadora do CLAM e integrante do Diversidade Católica.

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Referências
CARRARA, Sergio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. Bagoas: Revista de Estudos Gays, v.4, n.05, 2010, pp. 131-147.

JUSTINO, Rozângela A. Participação na mesa “Experiências e propostas em redes religiosas”. In: GIUMBELLI, Emerson (Org.). Religião e sexualidade: convicções e responsabilidades. Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2005. Pp. 115-121.

MACEDO, Cleber. A “clínica pastoral” dos psicólogos cristãos no Brasil. 2017. 120 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

MARIANO, Ricardo. Políticos evangélicos à beira de um ataque homofóbico. XXIX Encontro Anual da ANPOCS: GT Pessoa, família e ethos religioso, sessão 3: Família e religião: estratégias e ethos. Caxambu, MG), 25-29 out. 2005.

RUSSO, Jane A. Controvérsias em torno da homossexualidade nas classificações psiquiátricas contemporâneas: desvio, transtorno ou opção? Trabalho apresentado no Fórum de Pesquisa Especial Direitos Sexuais e Reprodutivos (FPE.02) da XXIV Reunião Brasileira de Antropologia. MIMEO. Recife, junho de 2004. 26 p.

SERRA, Cristiana de Assis. “Viemos pra comungar”: estratégias de permanência na Igreja desenvolvidas por grupos de “católicos LGBT” brasileiros e suas implicações. 2017. 188 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

VAGGIONE, Juan Marco. La politización de la sexualidad y los sentidos de lo religioso. Sociedad y Religión nº42, Vol XXIV, 2014, pp. 209-226. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=387239045010. Acesso em: 12 out. 2016.