Nos tempos de Jesus, havia na Palestina dois tipos de soldados oficiais (deixando de lado os possíveis zelotas ou soldados-guerrilheiros ao serviço da libertação judia). Uns eram do exército romano propriamente dito, que dependiam do Procurador ou Prefeito (Pôncio Pilatos), que governava de um modo direto sobre a Judéia e a Samaria. Outros eram do rei-tetrarca Herodes Antipas, que governava sob a tutela romana na Galileia (e os do seu irmão Filipe, tetrarca de Itureia e Tracontide, do outro extremo da fronteira da Galileia).

O Prefeito romano contava com cerca de três mil soldados de infantaria e algumas centenas de cavalaria, aquartelados basicamente em Cesareia, que costumavam ser originários do ambiente pagão da Palestina e funcionavam como exército de ocupação. De qualquer maneira, não era frequente vê-los na rua o nas povoações, nem mesmo em Jerusalém, onde governava o Sumo Sacerdote e o seu conselho, com a ajuda de alguns milhares de «servos» ou soldados da guarda paramilitar do Templo. De qualquer modo, nos tempos de crise ou nas festividades, o Prefeito romano subia a Jerusalém e instalava-se na Fortaleza Antónia, junto ao templo, a partir de onde controlava o conjunto da cidade.

Provavelmente residia ali uma pequena coorte, ou destacamento militar, mas não se misturava na vida civil e religiosa da cidade.

O Rei (=Tetrarca) Herodes Antipas governava na Galileia, sob o controle de Roma, mas com uma grande autonomia. Tinha que proteger as fronteiras e manter a ordem dentro do seu território, pagando um tributo a Roma. Possuía os seus próprios soldados, organizados como os de Roma.

Em caso de necessidade, os soldados romanos tinham que ajudar os de Herodes e os de Herodes que ajudar os romanos. De acordo com este princípio, na Galiléia não existia um «exército de ocupação», nem mesmo um domínio directo de Roma, ainda que muitos «nacionalistas galileus», partidários de um estado israelita, considerassem Herodes como um usurpador e os seus soldados como um exército opressor. Por outro lado, é normal que os soldados de Herodes fossem também de origem pagã, como os de Pôncio Pilatos, ainda que pudessem também ser judeus.

A partir deste cenário há que entender algumas passagens do evangelho que falam da relação de Jesus e dos seus seguidores com soldados. O texto mais significativo é aquele onde se diz aos crentes que ultrapassem a atitude do «olho por olho e dente por dente», própria dos exércitos do mundo, para acrescentar: «Não resistam a quem lhes fizer mal. Se alguém te bater na face direita, apresenta-lhe também a outra… Se alguém te obrigar a levar alguma coisa até a um quilômetro de distância, acompanha-o dois quilómetros.» (Mt
5, 39-40).

Estas últimas palavras referem-se ao serviço obrigatório que as forças do exército (de Herodes ou de Pilatos) podiam impor sobre os súditos judeus: obrigá-los a levar certo peso ou carregamento ao longo de um quilômetro. Pois bem, em vez de pregar a insurreição ou o protesto violento, Jesus pede aos ouvintes que respondam de modo amistoso à possível violência dos soldados. Jesus não condena os soldados imperiais: quer enfrentá-los perante o dom do reino, enriquecê-los com a graça do Pai que é bom para todos (cf. Mt 5, 45).

Com este pano de fundo, situa-se a sua relação com centurião que tem um amante doente e que pede a Jesus que o cure (Mt 8, 5-13). A cena foi elaborada pela tradição no contexto de abertura eclesial aos pagãos, mas no seu âmago há um relato antigo (cf. Lc 7,1-10; Jo 4, 46b-54). Jesus não satanizou os soldados, nem pretendeu combate -los com as armas, mas descobriu neles um tipo de fé que não se exprime através da vitória militar, mas na cura do amigo doente:

Quando Jesus entrava em Cafarnaum, acercou-se dele um centurião, que lhe rogava dizendo: «Senhor, o meu amante (pais) está prostrado em casa, paralítico, gravemente doente». Jesus disse-lhe: «Eu irei e curá-lo-ei». Mas o centurião disse-lhe: «Senhor, não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e o meu servo sarará, pois também eu sou homem com autoridade e tenho soldados sob o meu comando e digo a este «vai» e ele vai e àquele «vem» e ele vem; e ao meu servo «faz isto» e ele fá-lo». Ao ouvi-lo, Jesus maravilhou-se e disse aos que o seguiam: «Em verdade vos digo, que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé. Digo-vos que virão muitos do oriente e do ocidente e sentar-se-ão com Abraão, Isaac e Jacob no reino dos céus; mas os filhos do reino serão deixados de fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de dentes». Então Jesus disse ao centurião: «Vai-te e que se faça segundo a tua fé». E o seu amante ficou curado naquele preciso momento (Mt 8, 5 -12).

Este era um soldado com problemas. É um profissional da ordem e obediência, no plano civil e militar, um homem acostumado a mandar e a ser obedecido. É capaz de, na batalha, dirigir os soldados, decidindo, deste modo, sobre a vida e sobre a morte dos homens. Mas, a outro nível, é muito vulnerável: sofre muito com a doença de um servo amante. Antes de prosseguirmos será preciso que nos detenhamos e perguntemos sobre a identidade deste pais do centurião, que traduzimos por «amante». A palavra «pais» pode ter três significados: servo, filho e amante (quase sempre jovem) e pode resultar escandalosa. O texto paralelo de Jo 4,46b evita o escândalo e coloca «huios» (filho), em vez de «pais»; mas com isto temos de mudar toda a cena, pois os soldados não costumavam viver com a família nem cuidar dos filhos até depois de se formarem. Por isso, o centurião aparece aqui como um membro da corte real de Herodes (um «basilikós»). Também Lc 7,2 pretende evitar as complicações e apresenta esse «pais» como «doulos», isto é, como um simples criado ao serviço do centurião. Com isto resolveu um problema, mas criou outro: é verosímil que um soldado queira tanto ao seu criado?

Por isso preferimos manter a tradução mais óbvia de «pais» dentro do seu contexto militar. Em princípio, o centurião poderia ser judeu, pois está ao serviço de Herodes, no posto fronteiriço do seu reino ou tetrarquia (Cafarnaum). Mas o conjunto do texto apresenta-o como um pagão que acredita no poder curador de Jesus, sem a necessidade de converter-se ao judaísmo (ou cristianismo). Pois bem, como era costume nos quartéis (onde os soldados não podiam conviver com uma esposa, nem ter família própria), este oficial tinha um criado-amante, presumivelmente mais jovem, que lhe servia de assistente e parceiro sexual. Este é o sentido mais verosímil da palavra «pais» de Mt 8, 6 no contexto militar. Certamente, em teoria, poderia ser um filho ou também um simples criado (como supõem os textos paralelos de João e Lucas). Mas o mais simples e normal é que tenha sido um amante homossexual, alguém a quem outros livros da Bíblia (talvez Rom 1,24-27) teriam condenado. Por isso, preferimos manter a tradução mais óbvia de «pais» dentro do seu contexto militar. Em princípio, graças a Deus, como sabemos pelo texto seguinte («Levou as nossas doenças…!: Mt 6,17), Jesus não era um moralista, mas um messias capaz de compreender o amor e debilidade dos homens (no caso do amor homossexual assim ser entendido). Jesus sabe escutar o soldado que lhe pede pelo seu amante e dispõe-se a ir até à sua casa-quartel para partilhar a sua dor e ajudá-lo. Teria ido, mas o oficial não quer que se arrisque, pois isso poderia causar-lhe problemas: não era bem visto ir ao quartel de um exército odiado para tratar com dois homossexuais. Por isso suplica-lhe que não vá: basta-lhe que acredite na sua dor e diga uma palavra, pois ele sabe o que vale a palavra. Jesus respeita as razões do oficial, aceita a sua fé e dá-lhe a sua palavra. O resto da história já se sabe: Jesus cura o servo-amigo homossexual e apresenta o seu amigo centurião como sinal de fé e de salvação, sem lhes dizer o que deveriam fazer na manhã seguinte. É evidente que não exige, nem quer, que rompam o seu amor, mas que o vivam na fé e no amor do Reino.

– Xavier Pikaza

Fonte: Ecos (Rumos Novos), set.2009, p. 2-3